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TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM PLANALTINA

 

Profa. Dra. Regina Coelly Fernandes Saraiva

O embate tradição/modernidade marcou durante muito tempo a história de Planaltina. Eivado de preconceitos, distorções e negações, esse embate envolveu durante muito tempo a cidade e seus moradores.

Planaltina é parte do sertão. Nasceu, primeiro, como cidade goiana, no século XVIII. A região onde se situa era parte do circuito do ouro em Goiás. Com o declínio da mineração, no final século XVIII, a base da economia passou a ser a agricultura e a pecuária, definindo a vocação rural de muitas localidades do interior goiano até meados do século XX. Essa vocação esteve durante muito tempo associada à visão de “decadência” que marcou toda a região, e que também atingiu Planaltina.

Dentre os mais variados argumentos alegados para justificar a decadência, temos a precariedade das estradas, a falta de incentivos da Coroa para colocar em funcionamento novos meios de comunicação e o constante ócio em que vivia o povo de Goiás... todo esse conjunto de negativas criou uma imagem de Goiás que ficou gravada, por intermédio da cultura dos viajantes, como verdade inconteste... Repetida pelos historiadores contemporâneos, Goiás passou a ter um perfil de decadência, retrato de uma sociedade que parecia não ter o mínimo básico para existir devido à sua inoperância, sua carência de tudo, sua solidão traduzida em isolamento, sua redoma de preguiça. (CHAUL, 1997, p. 35)

Essa visão de decadência foi construída historicamente ainda quando as vastas e indefinidas terras interiores do Brasil, ou o sertão, já era representado pela dicotomia sertão/litoral. O sertão era visto como o incógnito, lugar ermo e distante; espaço do bárbaro e da tradição em oposição ao espaço civilizado do litoral, onde floresce a vida urbana, centros de saber, progresso.


Associado ao mundo rural, o sertão é o espaço delimitado para as sociedades tradicionais, marcadas pelo atraso e ignorância em oposição à vida urbana que representa a modernidade.
O espaço físico do sertão é imaginado como terras do interior, longínquas, ermas, isoladas, amplas, vazias, desérticas, pouco povoadas, áridas, selvagens, cheias de mato e de gado, terras do sem fim. O seu povo é imaginado como pobre, miserável, forte, bravo, macho, subdesenvolvido, ignorante, violento, inquieto, revoltoso, sem-lei, livre, sábio, criativo, supersticioso, religioso, devoto, resignado, respeitador, austero e móvel. A sociedade que compõe esse povo é tradicional, anacrônica, rural, latifundiária, autoritária e mística. Imagina-se a cultura desse povo como rústica, simples, popular, regional, rural, tradicional, foclórica e rica. (SCHETTINO, 1995, p. 9)

No século XIX, a visão de decadência associada às cidades goianas também foi reforçada por viajantes que percorreram o interior goiano e se depararam com o processo de ruralização que marcou a região, no período pós-mineração (CORRÊA, 2001).

Modernizar o sertão passou a fazer parte do projeto nacional, a partir da “decretação” getuliana da “Marcha para o Oeste”. Esse projeto de modernização proposto por Getúlio Vargas tinha a intenção de integrar as regiões interiores ao restante do país. A inauguração de Goiânia, em 1937, foi a primeira tentativa de trazer o moderno/urbano para a região, em meio a cidades coloniais remanescentes do período do ouro e fazendas de gado que se distribuíam por todo o Goiás.

A ideia de integração das terras sertanejas a um projeto de modernidade do País foi retomado somente com Juscelino Kubitschek que concretizou essa intenção a partir de 1955, quando assumiu o governo. O grande marco simbólico desse projeto foi a inauguração de Brasília, em 1960. A Capital Federal foi construída no centro do país, ladeada pela cultura sertaneja que, em meio a uma mistura de desejo e espanto, viu a cidade ser erguida: “era a coisa mais esperada aqui para nós, aquela força de vontade que viesse (...) era Brasília.” (Relato do Sr. Viriato de Castro. In: MONTI, 2002, p. 67).

O desejo da transferência da Capital para o interior do país é antigo: data do período colonial e percorreu muitos momentos da história. Planaltina se entrecruza com essa história, quando em 1922, foi inaugurada na cidade a Pedra Fundamental da futura Capital da República, a partir do projeto do deputado goiano Americano do Brasil. Entre os sertanejos, era forte a ideia de que a construção da Capital no interior traria novas oportunidades e possibilidades para a região. Essa ideia circulava com intensidade e, com JK, ela se concretizou.

A construção de Brasília é a marca da modernidade. A cidade, ao ser erguida em pleno sertão, tinha como objetivo mudar o quadro social, político e econômico que predominava nas terras interiores do Brasil. Desconstruir a ideia de decadência, associada à região, e romper os laços de tradição bastante fortes na porção central do País eram intenções do projeto, que tinha no urbano, na cidade modernista, seu elemento concreto. 

Modernidade é algo que diz respeito ao tempo presente. Ela está sempre em tensa relação com outro tipo de atitude, que se pode chamar, numa designação genérica, de tradicional (BARTHOLO JR., 1986). Brasília significava esse presente, em oposição ao passado colonial e tradicional do sertão goiano. A Nova Capital, ao ser construída, assumiu o caráter unilateral e unidimensional que não considera a possibilidade de existência de outros valores, tendendo para a negação daquilo que não diz respeito ao novo projeto. Durante muito tempo, vigorou a ideia de que “Brasília nasceu do nada”. Brasília negou as tradições, acirrando, desse modo, a dicotomia tradição/modernidade.

Planaltina foi sensivelmente afetada por essa relação. Ao ser incorporada como cidade de Brasília, a tradicional Planaltina se viu diante da necessidade de se modernizar. Para isso, parte do seu patrimônio arquitetônico foi alterado. Muitas casas antigas vieram abaixo, para dar lugar a casas de estilo moderno (afinal de contas era preciso acompanhar o ritmo modernista da Nova Capital). Nesse sentido, Planaltina teve muitas perdas.

Essas perdas foram intensificadas à medida que a cidade foi sofrendo alterações com a criação de novos bairros em função da construção de Brasília. A partir de 1960, foram criados bairros operários como moradia definitiva dos trabalhadores da construção da Nova Capital: Vila Vicentina, Vila Buritis I, II e III, Jardim Roriz são exemplos desses bairros. O surgimento desses lugares impôs à Planaltina a “condição de ser mais moderna”, e gerou muitos conflitos. Havia, nos primeiros anos, uma clara insatisfação com o fato de a cidade ter que abrigar pessoas que vinham de fora. Os moradores da antiga Planaltina se viram diante da condição de ter que conviver com o novo.

O incipiente contexto trouxe um ritmo diferente à cidade trazendo novos valores, e deixando mais clara a relação da cidade com Brasília. A maioria de seus moradores trabalhava no Plano Piloto (área central de Brasília), fato que os obrigava ao deslocamento diário e o retorno no final do dia. O ritmo diferenciado tornou possível reconhecer o papel que Planaltina (e outras cidades do Distrito Federal) passou a desempenhar ao ser incorporada a Brasília: “cidade dormitório”.

As diferenças e conflitos com a chegada de Brasília não foram demarcados apenas no plano da arquitetura. O modo de vida tradicional sofreu muito reveses. Os “valores da modernidade” ao serem introduzidos atingiram, entre outras coisas, tradições religiosas da cidade, como a Festa do Divino Espírito Santo, que deixou de ser realizada durante muitos anos. Pertencer a Brasília trouxe a condição de ser parte do novo projeto com todas as suas benesses e prejuízos.

O conflito tradição/modernidade revelou-se para Planaltina de forma singular, mas contribuiu também, ao longo do tempo, para tornar possível identificar a cidade como um “lugar de tradição”. Essa condição, que também está representada na arquitetura colonial remanescente, contribuiu para a criação do Setor Tradicional com as peculiaridades da antiga Planaltina. Essa distinção é um diferencial daquela parte da cidade. Até hoje, é comum as pessoas se referirem a “Planaltina”, apenas como a área do núcleo histórico. Diz-se comumente: “eu vou lá em Planaltina”, quando se vai ao Setor Tradicional.

Essa distinção delimitou o “espaço da tradição” na cidade, mas também serviu para afirmar outras condições: Planaltina não é somente uma “cidade dormitório” de Brasília; tem identidade própria, demarcada por suas raízes históricas, ou pelas tradições sertanejas que ainda podem ser vistas na cidade, como o encontro na praça, nos saraus e bailes, nas festas religiosas, na carroça que circula pelas antigas ruas, entre outras práticas.

A (re)construção de “lugar de tradição” não foi uma condição dada. Advém da luta pela memória que mobilizou moradores pelo reconhecimento e importância de Planaltina para todo o Distrito Federal. Sem essa luta, certamente, parte do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade teria se perdido. Vestígios da cidade, como a Igreja de São Sebastião, e o ato de comemorar várias datas significativas da cidade, entre elas o aniversário do antigo Arraial de São Sebastião de Mestre D’Armas, expressam essa luta. Antigos e novos moradores revelam na ação coletiva o compromisso com a valorização da história e do patrimônio da cidade.

Ser um “lugar de tradição” traz em si o questionamento do embate tradição/modernidade. Planaltina, neste sentido, afirma a condição de ser “cidade tradicional” ao valorizar as marcas da pré-história de Brasília e ao recuperar sua condição histórica associada ao seu passado (goiano) sem perder o referencial com a cidade modernista. Existe um movimento de valorização das tradições, traduzido na retomada de festas e (re)construção de memórias, que se soma ao orgulho de pertencer a Brasília.

REGINA COELLY: Históriadora e Doutora em Desenvolvimento Sustentável. Professora da Universidade de Brasília, atuando nos cursos de graduação em Gestão Ambiental e Licenciatura em Educação do Campo e no Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG/MADER) na Faculdade UnB Planaltina. É professora membro do Centro de Estudos da do Cerrado Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado). Atua em projetos de extensão e pesquisa sobre o patrimônio sociocultural de Planaltina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Planalto Central: eco-história do Distrito Federal - do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000.
BARTHOLO JR., Roberto S. Os labirintos do silêncio. Cosmovisão e tecnologia na modernidade. Rio de Janeiro: Marco Zero/ Coppe/UFRJ, 1986.
CASTRO, Mário. Realidade Pioneira. Brasília: Ed. Thesaurus, 1986.
CHAUL, Nars Nagib Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Editora UFG/Ed. UCG, 1997.
CORRÊA, Margarida Maria da Silva. Naturalistas e viajantes estrangeiros em Goiás (1800-1850), In: CHAUL, Nasr Fayad; RIBEIRO, Paulo Rodrigues (Orgs.). Goiás: identidade, paisagem e tradição. Goiânia: Editora UCG, 2001.
DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DO DISTRITO FEDERAL. Ruas de Planaltina: inventário do Patrimônio Cultural de Planaltina. Brasília: Secretaria Estado de Cultura do Distrito Federa/GDF, 1998.
DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DO DISTRITO FEDERAL. Patrimônio nas ruas. Brasília: Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal/GDF, 2002.
MAGALHÃES, Luiz Ricardo e ELEUTÉRIO, Robson Eleutério. Estrada Geral do Sertão – na rota das nascentes. Brasília: Editora Terra Mater Brasilis, 2008.
MATTOS, Olgária. Memória e história em Walter Benjamin, In: O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Departamento do Patrimônio Histórico, São Paulo: DPH, 1992.
MONTI, E. Sertão-Brasília: história, cultura e meio ambiente: interações na criação de materiais educativos. Dissertação de Mestrado, Centro de Desenvolvimento Sustentável/UnB, Brasília: Universidade de Brasília, 2002.

SCHETTINO, M.P.F. Espaços do sertão. Dissertação de Mestrado, Departamento de Antropologia/UnB. Brasília: Universidade de Brasília

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