Bruno Santiago
Situada a ocidente do Distrito Federal , bem a paralelo com as cidades satélites de Taguatinga e Ceilândia, encontra-se a bucólica vila de Olhos d’água, distrito de Alexânia, Goiás. Sua situação geográfica é bem pitoresca, formando um atraente conjunto de vales, serras e suaves colinas que se alargam por sobre o vale do rio Areias, afluente do caudaloso rio Corumbá. O cimo da povoação, na verdade um trevo ou balão rodoviário por onde desemboca a rodovia asfaltada proveniente de Alexânia, é o topo de uma chapada. Lá do alto, a cerca de mil metros de altura, descortina-se um belo horizonte com vista natural a atingir mais de oitenta quilômetros. A noite é possível divisar as luzes das satélites de Samambaia (ao sul) e Ceilândia (ao norte), as luzes dos municípios goianos de Águas Lindas, Alexânia e Santo Antônio do Descoberto, além dos povoados de Campo Limpo (a célebre Cidade Eclética) e Aparecida de Loyola.
Mas afora as belezas naturais que pontilham a vista do interessado, Olhos d’água é famosa pela tradicional Feira do Troca, que ocorre ordinariamente todo primeiro domingo dos meses de julho e dezembro. Resquício dos antigos comércios que se realizavam pelos interiores do Brasil central, em que a ausência de moeda ou outro valor em espécie era comum, a feira guarda uma ponte direta com esse passado distante. Não se sabe ao certo quando começou, mas nos anos 1930-1940, a povoação já existia no mesmo local. Pelas informações obtidas na Paróquia de Nossa Senhora da Penha de França em Corumbá, a capela de Santo Antônio de Pádua de Olhos d’água estava ativa por essas décadas.
De acordo com o pesquisador Wandhoyl Pegado(01), foi uma promessa realizada por uma mãe protetora do filho que fez surgir a referida capela. Temendo que seu menino fosse convocado para o Exército (época do Estado Novo? Segunda Guerra Mundial? combate aos comunistas da Intentona?) obtém a dispensa do filho, e em gratidão pela graça, ergue a capela ao Santo português. É bem provável que após a instalação do templo, agricultores e criadores passam a aglutinar em torno do largo em forma de quadrado onde se encontra a praça atual, a única da vila. Igreja consagrada, casas e moradores fixados, há a necessidade de dotar de víveres e bens imediatos a população, escassa todavia, mas que requer os itens básicos para sua sobrevivência. Igual a outras vilas e povoações goianas que pela falta de moeda precisa improvisar nas trocas, a vila de Olhos d’água não é diferente e passa a receber mascates que vão fazer seu pequeno comércio a varejo. A escassez de bens e a simplicidade dos moradores é tão pronunciada, que mesmos os mascates deixam de frequentar o lugar, sobrando a seus habitantes a permanência da outrora prática mercantil: o escambo.
Os mascates que percorriam os sertões brasileiros por estas épocas apesar de não exigirem o dinheiro em espécie na hora, o faziam na data combinada com cada freguês, de acordo com a conveniência e possibilidade. Forjava-se assim, entre fornecedor e consumidor a segurança da fiabilidade, da confiança depositada num e noutro. Contudo para os casos em que não havia a mínima condição de solvência, por uma série de fatores dos quais a pobreza era o mais regular, era impossível mascatear. Restava a velha prática das trocas entre moradores, vizinhos de roça, paroquianos e fregueses que adquiriam produtos alimentares básicos na própria comunidade e “compravam” com outra produção, geralmente própria. A crise que assolava Goiás desde o ocaso da mineração em fins do século XVIII, e já tinha ares de permanência eterna nos inícios do século XX, se evidenciava nessa prática ancestral. Vale lembrar que nos centros urbanos de maior monta e nas cidades do Estado – poucas dignas do nome – lá pelas décadas de 1930 e 1940, podia-se falar em comércio; mas na maioria das localidades, e nas regiões avançadas para o interior, as trocas era o meio ao alcance para se sobreviver naquelas remotas paragens.
FEIRA DE TROCAS
Segundo a pesquisa realizada por Wandhoyl Pegado a respeito das origens específicas de Olhos d’água, segue as informações abaixo:
“As terras situadas no município de Corumbá de Goiás entre as coordenadas geográficas de 16º 01’ de latitude Sul e 48º 35’ de longitude Oeste, pertenciam, até 1940, a Fazenda São Domingos, de propriedade dos cunhados Germiniano Ferreira de Queirós e Juvenal Fernandes Parente. Em uma chácara vizinha viviam Francisco Marques da Costa e Maria Sebastiana de Magalhães. Seu Francisco e Dona Maria Sebastiana tiveram seis filhos: Domingos, Antônio, Josias, Estela, Tereza e Ana. De todos esses personagens, somente dois filhos de Dona Maria e Seu Francisco estão vivos: Dona Ana - carinhosamente chamada de Dona Anita por todos -, com 76 anos e Seu Antônio com 84. É interessante notar que além desses dois, apenas mais duas pessoas, Dona Regina e Dona Ana Lima, são moradoras residentes em Olhos d’Água desde a sua fundação. Os demais ou já faleceram ou se mudaram para outro lugar. O restante dos moradores mais antigos têm, em média, 30 anos de residência nesse povoado e vieram, em sua grande maioria, de outras
cidades do Estado de Goiás ou de Minas Gerais.”
Contudo pelas informações obtidas no arquivo paroquial de Corumbá, hoje alocados na Arquidiocese de Goiânia, desde os anos 1930 que se percebe gente movimentando o pequeno local. Como mencionado acima, estas agrupações precisavam se sustentarem em víveres e alimentos, bens móveis domésticos e animais para criação. Devido ao isolamento da área, posteriormente vila, a ausência de distribuição comercial, a parcimônia em lucros para os errantes mascates, colaboraram para em pleno correr do século XX o expediente das trocas estar de volta. E isso a cerca de cento e setenta quilômetros da promissora capital goiana recém instalada, cem quilômetros de Anápolis, na altura centro mercantil considerável e em torno de trinta quilômetros de Corumbá, antiga vila mineradora.
Mas é difícil precisar o ano em que nasceu a feira do troca de Olhos d’água. Ou mesmo se havia uma feira propriamente dita, digna do nome. A poucos quilômetros dali, no sentido de quem volta para Brasília, a leste-sudeste da vila, encontra-se a Serra do Ouro, povoação antiga onde aglomeraram-se gente à cata do precioso metal que lhe empresta o nome. Hoje situada às margens da BR 060 entre os rios Areias e Sapezal, a Serra do Ouro registra uma diminuta feira do troca, que a muito acabara, mas que ainda permanece na lembrança de antigos moradores, ou ex-moradores. E a razão pela existência de tal prática era a ausência de comércio formal, pela inexistência de fornecedores, ausência dos mascates e distância dos trilhos da Estrada de Ferro Goiás proveniente de São Paulo. Se tal realidade se impõem sobre a citada vila da Serra do Ouro é provável que em Olhos d’água a situação não fosse diferente. Nestas vilas o tipo humano se organizava em torno aos ofícios do campo, à criação, sendo a vida levada muito mais no trato com a terra que com as conhecidas e habituais atividades urbanas. Eram na verdade vilas rurais pois o sustento era tirado da terra, pelo que ela ofertava – extrativismo – ou pelo plantio de autosubsistência.
O que informa Wandhoyl Pegado sobre os primórdios da feira de Olhos d´água é interessante para este relato:
“O barro era um material importante para a fabricação de panelas, potes, fogões e no revestimento de paredes. O algodão era um produto importante plantado na região. Com ele as mulheres teciam e fiavam vários tipos de tecidos. As cestas de palha, gamelas e colheres de pau também faziam parte da variada produção doméstica dos moradores. Desse modo os habitantes de Olhos d’Água, em suas primeiras décadas, eram auto-suficientes em produtos de primeira necessidade. (...) A forma corriqueira de se conseguir esses produtos era o escambo. A produção excedente de Olhos d’Água, então, era escoada por meio desses viajantes que efetuavam troca de mercadorias com os moradores.”(02)
Essa localizada produção para atender exclusivamente os moradores em suas necessidades básicas e cotidianas, serviu como de costume, para intercambiar com outros, ou que por ali passavam ou que por ali se dirigiam para fazerem o mesmo processo. Ainda segundo o pesquisador, produtos derivados do barro eram essenciais para o uso doméstico, moringas, jarras, copos, etc. O mesmo se pode dizer sobre os tecidos, urdidos no lugar para atendimento das famílias. Devido à parca monta desses produtos é crível dizer que eram os próprios moradores a circularem pelas paragens locais fazendo esse “intercâmbio mercantil”.
Já em 1954 instalado o distrito de Olhos d’água pertencente a Corumbá, com o traçado da praça concluído, casas e pequenas vendas ao redor, está montada a estrutura para o que viria a ser a feira do Troca. Pelo que consta do Plano de Urbanismo da Prefeitura de Alexânia, o arruamento desta parte principal da vila só seria feito nos anos 1970, e o asfalto chegaria somente nos anos 1980. Mas as condições urbanas já estavam perfeitamente assentadas para a instalação da e uma feira, o que ocorre paulatinamente desde os finais dos anos 1950.
Com o adensamento populacional de Brasília, e sua eclética população a descobrir o indômito sertão goiano que a represava, Olhos d’água e sua feira passaram a fazer parte do calendário de eventos anual para muitos. E não apenas visitas atraíam – e atraem – os adventícios; muitos acabam se “arranchando” em Olhos d’águas, atraídos por sua preservada beleza natural ou sua atmosfera bucólica. Seu ar liberal para com todos e a disposição da acolhida goiana, sempre pronta a juntar com aqueles que a procuram, fazem o resto tornando Olhos d’água um oásis bem perto da pujante capital.
01- Pegado, Wandhoyl Antônio. Pequena História de Olhos d’água. Trabalho de Especialização em História pela União Pioneira de Estudos Sociais. Disponível no sítio: www.upis.com/pesquisas/acervo Acesso em 20 de dezembro de 2016.
02-Pegado, Wandhoyl. Op. Cit. P. 3
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