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A LITERATURA COMO FORMA DE MANUTENÇÃO
DOS REFERENCIAIS DA CULTURA CERRATENSE
POR IÊDA VILAS-BÔAS
Vivemos no cerrado, somos parte desse solo seco, envolto em uma nuvem areienta, que chega com os ventos campineiros de agosto e só cede lugar à chuva fininha, demorona, chuva do caju em meados de setembro. Depois, caem os céus em pancadas. A chuvarada maneira, de setembro, vem para abrir alas às chuvas torrenciais de nosso cerrado.
Chuvas que são temporãs, que caem na cabeceira dos rios e vão se avolumando. Sem medo de nada. Descem correnteza abaixo de goela aberta, engolindo, arrastando e depois vomitando turbilhões a nos lembrar de sua força e a nos dizer, estrondosamente, que a água é força elementar da natureza, poder vital e necessário.
Por vezes, as águas dos rios traquinam, ou serão traquinagens dos habitantes dessas águas traquinas? Água não segue lei, revira, remexe, serpenteia e sai lá adiante.
Vai bebendo em sua sede insaciável barrancos, galhos, casas, gentes. Muitos já viraram também água. Fugiram às regras e não voltaram ao pó bíblico. Viraram água corrente, água bruta, para depois se transformar em calmaria de biquinha, de olho d’água no meio do Cerrado. Foi assim com o Zé, com a mulher e seus dois netos, também com os muitos jovens ousados e destemidos do ruído e da fúria da água. Todos se embrenharam, para nunca mais sair, neste redemoinho.
Em nosso cerrado encontram-se as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (Amazônica com Tocantins, São Francisco e Prata). Água não nos falta e não nos faltará se mantivermos uma cooperação consciente, coesa e justa com o meio ambiente e sua biodiversidade.
Entretanto, não basta somente reproduzir o velho jargão: Preservar é preciso! Não basta nos escondermos por detrás de um discurso politicamente correto. É preciso agir. Fazer mais! Pergunto a vocês: O que temos feito pelo patrimônio ambiental, cultural e histórico de nosso cerrado? De nossa Formosa?
Temos um exemplo latente e atual: o caso das Árvores da Praça da Matriz, que não são árvores nativas em nossa região. O Cerrado acolhe quem o escolhe!
São nativas do México, América Central e Antilhas, comum no Maranhão e principalmente na região Amazônica, mas tão bem se acostumaram aqui que (ainda) estão de pé, mas uma hora vão cair.
Nosso adversário é muito forte. A igreja poucas vezes perdeu uma batalha, para comprovar, miremos o passado e façamos uma retrospectiva pela história.
Essas árvores vão cair e eu, que sou sentimento, cultura e poesia vou chorar lágrimas enegrecidas pela poluição e pelo ar rarefeito que nos cercará dali em diante. Seremos sufocados, esmoídos pelo concreto da praça. Onde está a voz do poeta que nos impingia a ocupar as praças?
- “A praça é do povo, como é céu é do condor”!
Não aqui, poeta! Essa praça tem dono e são poderosos! O povo nem quer saber dela, e as raízes dessas árvores, quase centenárias, atrapalham o caminhar desgracioso das socialites falidas e descompromissadas com o Cerrado e sua cultura. E, ainda, poeta, existem os que dela querem obter lucros. Como se não lhes fossem bastante a sombra frondosa e o ar puro.
Em minha fé, clamo: Meu Divino, meu Divininho cuida das Mongubas por mim! Proteja-as da ganância e das futilidades. Envia um anjo bom para podar seus galhos e dar-lhes adubo e bom trato.
Somos Cerrado! Trazemos impregnados em nós um suor poeirento, de terra saroba. Expressão utilizada para dizer que temos uma cor de encardidos. Graças a Deus! Cor pura da miscigenação brasileira. Somos de um amarelado, quase cinzento.
O cerrado possui a beleza de Eros. Segundo Pierre Brunel , analisemos Eros como “deus primordial, que resulta na amplitude de seu poder, que se estende não apenas aos deuses e aos homens, mas aos elementos e à própria natureza. Eros é força fecundadora do universo, está ligado à vegetação, cuja renovação primaveril coincide com a estação dos amores”.
Esse é o Eros que nos interessa: o princípio da vida. Eros é belo, desperta desejos, mas é filho de Gaia, a própria terra e rola no chão e cobre-se de folhas e de poeira, brinca como criança. É terra, é chão. Também o somos, nós seres cerratenses. Acerca do mito de Eros nos diz Brunel:
(...) a criança Cupido, aparece sempre pobre, não é delicado e belo como geralmente se crê; mas sujo, hirsuto, descalço, sem teto. Deita-se sempre por terra e não possui nada para cobrir-se, descansa dormindo ao ar livre sob as estrelas, nos caminhos e junto às portas. Enfim, mostra claramente a natureza da sua mãe, andando sempre acompanhado da pobreza. Eros, dessa forma, é a personificação da própria natureza.
À primeira vista, nosso cerrado exala aos que não pertencem a este solo, uma desconfiança lerda. Uma desconfiança sem motivo, ou melhor, motivada pelos preconceitos históricos que se arraigaram séculos afora.
Façamos algumas reflexões: não quiseram conquistar-nos desde o início? Não viram nossas imensas riquezas? O preconceito nasce atrelado ao desconhecimento e, ainda bem, tem muitos sábios modernos que pensam que em nosso cerrado tem onças.
E de fato tem. Vejo inúmeras na plateia. Onças bravias na defesa de seus direitos, de suas crias, de seu espaço. No cerrado tem... onças, bruxas, duendes, segredos. Que só se desvendam aos que se despirem de outros lugares, costumes, tradições e se tornarem um SER CERRATENSE.
Há beleza em nossa savana? O que me diz você? O cerrado é belo para você? Posso dizer, a partir da mirada de meus míopes olhos que o cerrado é o lugar mais lindo do mundo, mas há que se ter sensibilidade para perceber suas minúcias.
O cerrado vai se mostrando aos poucos. Não possui a exuberância das florestas tropicais, nem o apelo das paisagens beira mar. O cerrado vai se mostrando, como nosso povo goiano, em pequenas saliências.
Qual de vocês já se debruçou sobre uma Caliandra, que em seu festivo carmim, espraia alegria e vermelhidão por entre a vegetação coberta de pó? Qual de vocês já se deitou debaixo de um pé de sucupira florido e não cismou amores? A cor roxa de suas flores traz reminiscências... a Paixão de Cristo, a sua paixão, a minha, a de todos nós... Porque ser Cerratense, é, sobretudo, ser apaixonado.
Qual de vocês não gastou tempo observando as proezas do urubu-rei e do Caracará. E ver, ali, que a cadeia alimentar e a luta pelo seu topo recomeça, instantaneamente, ao primeiro brilho do sol?
Para mim, ser Cerratense e falar de leituras, literatura e cultura que valorizam minha região, me traz um enorme sentimento de pertencimento ao meu chão. Sim, sou chão. Sou deste chão sarobento, cheio de toá, chão amarelo, chão poeirento. Sou chão, sou terra, sou Cerratense. Deste espaço geográfico amplio minha visão para múltiplos mundos e possibilidades, mas volto. Sempre!
É aqui que meu espírito mora. Talvez amarrado num pé de pequi carregadinho de bagos. Ou anda meu espírito preso pelas cagaiteiras, nos pés de mangaba, pelos jatobás, ou simples que seja, preso nas ramadas das quaresmeiras em flor.
Não basta somente saber que o Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul e que ocupa uma vastidão de terras do território nacional. Importa saber que terras são essas, que povo é esse?
São muitos os que vivem e sobrevivem dos recursos naturais do cerrado: etnias indígenas esparsas e sobradas pelo acaso, quilombolas corrompidos pelo afã do mundo virtual, geraizeiros que continuam se arriscando por profissão ou afeição nas brenhas dos Gerais. São ribeirinhos, babaçueiros, vazanteiros que, traduzem e compõem o valoroso mosaico do patrimônio geográfico, histórico e cultural brasileiro. Somos, com orgulho, o povo CERRATENSE que habita o miolo geográfico do país.
Implica saber que estamos no planalto central e que o cerrado nos cobre com sua benção. Esparrama seu manto amarelo-azul-gaio-cinzento sobre os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. E, por bondade, estica seu manto para beiradas além no Amapá, Roraima e Amazonas.
É por essa importância geográfica que a literatura traz sua contribuição aos valores, tradições e culturas do cerrado. O cerrado é celeiro de intelectualidade. Podemos destacar inúmeros nomes que honraram a história e a literatura de nosso Brasil. Novamente, por preconceito, poucos são os que alcançaram notoriedade Nacional.
Dentre eles destacamos minha amada Cora Coralina. E outros tantos que são homenageados em nossa ALANEG – Academia de Letras e Artes do Nordeste Goiano. Apontemos alguns a começar pelo nosso Patrono máximo: o historiador e diplomata Francisco Adolpho de Varnhagem, Visconde de Porto Seguro (17/2/1816 – 26/6/1878). Esse homem desbravou nosso cerrado e prestou seus relevantes serviços em prol do Planalto Central ao percorrer essa região por seis meses em 1877 e publicar em seus estudos argumentos em defesa do triângulo formado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre D’armas, destacando a região como o local mais adequado à construção da Capital Federal do Brasil bem antes da Missão Cruls (17/5/1892-7/5/1894).
Intelectuais do Chapadão do Paranã se reuniram e resolveram criar a ALANEG que tem por finalidades, entre outras, “a criação, difusão e preservação de BENS CULTURAIS (Manifestações, Tradições e Patrimônio) localizados na sua Área de Abrangência Territorial, por meio da Literatura, Artes, Artesanato, Ciência, outros fazeres e saberes populares e eruditos em Ações Educativas e Socioambientais em prol do Povo Brasileiro e da Humanidade, num Pacto de Compromissos “Ético-cósmico-planetários” que celebre a grandeza e simplicidade do Homem Cerratense, da Vida, da Justiça, da Liberdade e do Universo em Paz”.
A ALANEG, em suas 50 cadeiras, homenageia como Patronos de seus membros, homens e mulheres, todos os escritores, poetas, artistas, intelectuais e pessoas com reconhecida militância cultural pelo Planalto Central, pelo Vão do Paranã e Cerrado brasileiro.
Por assim julgarmos que estamos preservando o imaginário poético, artístico e, valorizando a cultura popular de nosso Cerrado é que, em forma de resgate histórico, apresentamos esses nomes, esta lista de saudade:
1. Silvério Mendes Teixeira.
2. Olympio Jacintho.
3. Dom Tomás Balduíno.
4. Bernardo Elis.
5. Leo Lynce.
6. Olinda da Rocha Lobo.
7. Eurídice Natal e Silva.
8. Americano do Brasil.
9. Gelmires Reis.
10. Maestro João Luis do Espírito Santo.
11. Professora Orlandina de Castro Miranda.
12. Juscelino Kubitscheck.
13. Cora Coralina.
14. Claudiano Rocha.
15. Hugo de Carvalho Ramos.
16. Ricardo Paranhos.
17. Eli Brasiliense.
18. Monsenhor Zezinho – José Sebastião da Costa.
19. Regina Lacerda.
20. Pacífica Josefina de Castro.
21. Paulo Bertran.
22. Goiandira Ayres do Couto.
23. Rosarita Fleury.
24. José Décio Filho.
25. Benedita Cypriano Gomes – Santa Dica.
26. Bernardo Fernandes Guimarães.
27. Leodegária Brazília de Jesus.
28. José Joaquim da Veiga Valle.
29. Félix de Bulhões.
30. Miguel Carneiro.
31. Nelly Alves de Almeida.
32. Ana Balduíno Chaves.
33. Lauro Muller.
34. Jose Dilermando Meirelles.
35. José de Mello Álvares.
36. Sinval Gonçalves de Oliveira.
37. Ilmosa Saad Fayad.
38. Walda Miranda de Paiva.
39. Yêda Leal da Costa.
40. Raimundo José da Cunha Matos.
41. Odete Vilas Bôas da Silva.
42. Carmo Bernardes.
43. João Teixeira Álvares.
44. Maria Aparecida Hamu Opa.
45. Nabi Gebrim.
46. Luiz Cruls.
47. Evangelino Meirelles.
48. Esteva Rodrigues de Souza.
49. Pedro Ludovico Teixeira.
50. Maestro Miguel Affiune.
Queremos fazer mais: difundir a cultura Cerratense por todo nosso país, pela América Latina e pelo mundo. Quiçá tenhamos fôlego e apoio nessa empreitada. Contudo, não podemos esmorecer, contamos com a força dos jovens, como bem disse Cora: “Creio nos jovens, abrindo espaços largos na vida”.
Termino esta breve exposição deixando com vocês uma poesia minha que intenciona trazer algumas sensações que o Cerrado nos transmite. O texto é singelo, feito para crianças que precisam aprender a gostar, admirar e cultuar nosso chão Cerratense.
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