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Efabulação
Uma modalidade de dizer a saga do teatro a Gil Vicente

Por Lúcia Helena Alve de Sá

A efabulação é um termo por mim conceituado para renegar as expressões maçantes e desgastadas “contadores de estória” e “contação de estória”. Efabulação é ato poético enquanto criação, renovação, subversão, celebração e conjunção de múltiplas linguagens nas quais a questão da autoria (foco no efabulador) é de extrema importância para a construção do espaço cênico da palavra. Somando-se a isso, designo que aquele que efabula (mais comumente denominado por contador de estória) tem compromisso com a palavra em despojamento dos requintes materiais e da cotidianidade supérflua do homem moderno. Sendo assim, o efabulador é um encantador do Ser (do ente mais profundo) de si-mesmo e do Outro sempre no limite e limiar da saga do dizer heideggeriano.

O entendimento de que o efabulador não é simplesmente um repetidor mimético de estórias (contos, fábulas, lendas) é decorrente de técnicas de sensibilização com a palavra e com a imagem. Ele é um encenador sui generis do discurso do Outro e, o sendo, já é ele mesmo autor, ator e personagem a um só tempo da estória do outro. Essas técnicas mexem, essencialmente, com o universo íntimo seja do ouvinte, seja do leitor e até mesmo do ledor, de modo a levá-los a recolher, escolher, selecionar, de dentro de si mesmos, as lembranças e experiências disjuntivas e recalcadas para trazê-las à luz da linguagem oral compreendida, por sua vez, como drama que trama o espetáculo e encenação da palavra em uma nova modalidade de invenção da vida humana em novo tipo de teatralização a Gil Vicente. Só após a acumulação de uma série de materiais produzidos livremente, a partir de estímulos que o efabulador propõe, é que o aspecto visual da palavra (enunciado oral que é texto) apresenta-se em forma poética. Este procedimento recai na análise de que toda imagem (pensamento) é texto. Se o texto é produção de um ente, logo, é poético e todo poético (poíesis) é drama, isto é: teatro há muito desenvolvido na pedagogia teatral de Gil Vicente.

Efabular é uma arte e a efabulação está inserida em toda e qualquer exteriorização de nosso pensamento quer seja por meio da palavra falada, quer seja por meio da escrita, pois que é comunicação. Esta comunicação contém algo que queremos transmitir a alguém, o mais das vezes, com a intenção de impressionar o outro que junto com o efabulador sofre uma catarse (do grego κάϑαρσιςkátharsis, “purificação”, derivado de καϑαίρω “purificar”).

A epifania pertence ao efabular da efabulação. O efabulador é, portanto, um encantador de estórias e só o pode ser se for um leitor modelo de livros cujo teor literário adensa as estruturas psíquicas do leitor, alargando o imaginário poético, as possibilidades metafóricas da palavra e a polissemia da linguagem. Para o exercício da efabulação é necessário a compreensão de que contar, no sentido mesmo de dizê-la, uma estória é, sobretudo para crianças, uma forma de culto. O efabulador rende culto ao imaginário coletivo e, por sua voz que entoa estórias fantásticas, mágicas, professa culto à tradição, à memória.

Na efabulação, aquele que oraliza estórias atende ao chamado de alguma coisa que quer ser cultuada, mas também, aprimora alguma coisa que é sempre aprimorada. Isto porque, o efabulador tem de ser poeta para metaforizar linguagens. O efabulador é aquele que presta reverência e faz acontecer pensamentos, coisas, atitudes, intenções, ações, expressões ou tudo aquilo que lhe seja de motivo de veneração dos e para os cantares (d)a Língua, d(a) Música e (d)a Arte. Ele é, também, aquele que promove a ancoragem histórica da língua e para quem a Cultura é tudo o que o trabalho do homem foi capaz de acrescentar, recriando, ao que é dado pela natureza à sua volta.

O efabulador é fonte de proveniências, é um cultor que, pelas diferentes palavras de som, de luz ou de cor que efabula na efabulação deixa no tempo registrado a Língua do Espírito de um povo. Há quem diga que é a “Língua de Fogo”. É o caso do poeta, mestre de todos nós, José Santiago Naud, mas também, é expressão afeita aos trabalhos hermenêuticos iconográficos e simbólicos de Manuel J. Gandra.

A efabulação que efabulo quer indicar ao sujeito que quer contar estórias que ele tem de dizer ou exprimir e ouvir por meio de canto; celebrar em poesia, comemorar em música; dizer com certa entonação e cadência de voz; gerir, cantando; formar, emitir com a voz sons ritmados e musicados; produzir sons melodiosos ou cadenciados. Desse modo, a efabulação é expressão de múltipla linguagem para toda ordem do fazer; é expansão da língua para além da própria onda sonora; é anunciação dos cultores. Neste sentido, é ação de cultuar ou resultado do cultivar; composição poética em culto à língua e em cultivo do corpo e do espírito; o alvorecer, o eclodir da existência.

Efabular, efabulação e efabulador transcendem a multiplicidade da vida em ficção, pois que pelo entoar a palavra na saga do dizer (do contar encantando, dramatizando e encenando), a uma só vez, conciliam os contrários e dominam a fuga existencial do tempo. Celebram o ciclo da Natureza em seu ritmo e periodicidade. Então, no uso da linguagem falada, a efabulação festeja a língua enquanto cultora de cantares, o sal da terra. No ato de contar estórias, todas as possibilidades de encenação se reúnem e se repercutem: a dança e a poesia, a música e as diferentes artes contribuem para fazer da efabulação o lugar e o tempo de um arrebatamento espetacular. A efabulação é, por conseguinte, uma forma ritual; reunião de pessoas para fins recreativos e/ou de afago, alegria, contentamento.

Por efabulação entendo seu conceito como sendo a saga do dizer dos cultores e cantares em torno do pensar poetizante agostiniano. Ademais, efabular é uma exposição, uma mostra de tendências da Cultura e da Arte, importando ressaltar que nela o livro é um artefato cênico e a leitura da literatura constitui-se em teatro literário à Gil Vicente, pois quem está a efabular convoca a si mesmo e o Outro a participar da efabulação ativamente e não são meros espectadores, pois devem interagir com o que está acontecendo. Tem caráter prático e sua realização requer uma abertura ao diálogo entre os efabuladores e o que se está a efabular, enfatizando: a troca de ideias, de livros e a demonstração de intervenções e motivações em torno do assunto e temas a ele relacionados, questões relativas ao poético, à poeticidade, à autoria e à promoção do livro e da leitura.

A efabulação operacionaliza motivações poético-pedagógicas para crianças, jovens e adultos, independentemente de formação ou nível de escolaridade, e desenvolve atividade específica sobre o ato de efabular (pensar), estreitando laços com a estética da recepção, digo até que orienta uma metodologia dos três olhares. Estórias e poemas são efabulados a partir de técnicas de sensibilização e a partir do cotejamento de diferentes linguagens. Linguagem oral e encenação; palavra escrita e desenho animado vão mudando o final da narrativa. Exercício de narrativa: continuando uma história iniciada. Ouvir, ler e dizer contos, causos e cantos. Desse modo, a efabulação é freiriana no que concerne à compreensão de que ― a leitura do mundo precede a leitura das palavras e, também, heideggeriana no que tange à saga do dizer, à procura da linguagem do ser do ente. Quem efabula tem a oportunidade de entender horizontes de experiências e estará apto a expandir e desenvolver horizontes de relevância temática, horizontes de efeito (recepção).

Ora, a natureza imediata da linguagem são os Cultores e Cantares em Efabulação que bem abarcam o plano dos objetos poéticos por natureza: som, ritmo, ideias; a água, a terra, o ar e o fogo. A Palavra como Força Metapsíquica. Ava: belas palavras. Os efabuladores aqui são poetas. E é assim que vejo com graça a Festa da Língua que ocorre hoje no centro histórico da cidade de Planaltina, celebrando de modo singelo e agradável os 800 anos da Língua Portuguesa cujo primeiro documento oficial de que se tem notícia é o Testamento de D. Afonso II.

Hoje, reunidos em efabulação e exbrangindo em praça pública, vale a pena recordar o que Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, escreveu oportunamente no Livro do Desassossego: “A minha pátria é a língua portuguesa”. É, aliás, uma festa essa língua cujos sentidos assim os conceituo:

Festa (fes.ta) sf. 1 Comemoração que transcende a multiplicidade; A função essencial da festa do Divino Espírito Santo é, a uma só vez, conciliar os contrários e dominar a fuga existencial do tempo. 2 Celebração do ciclo da Natureza em seu ritmo e periodicidade; A língua festeja, enquanto cultora de cantares, o sal da terra. 3 Ato de repetir; No Carnaval, todas as possibilidades de repetição se reúnem e se repercutem: a dança e a poesia, a música e as diferentes artes contribuem para fazer da festa o lugar e o tempo de um arrebatamento espetacular. 4. Forma ritual; Na Festa dos Tabuleiros, em Tomar, as canéforas encenam a alegre promessa futura da ordem ressuscitada. 5 Reunião de pessoas para fins comemorativos, recreativos e/ou solenes em que se celebra fato ou figura histórica ou religiosa; Os povos lusófonos reúnem-se para comemorar os 8 séculos da Língua Portuguesa. Fig. Afago, alegria, contentamento; Amar é um não findar de contentamentos. [F.: Do lat. Tard. festa]

Língua (lín.gua) sf. 1 Anat. Órgão muscular móvel, situado na boca, que serve para sentir os sabores, deglutir e articular sons; As línguas dionisíacas sussurram sons ao sabor das uvas 2. Qualquer coisa cuja forma lembra a desse órgão; Há bocas como línguas em fogo ardente. 3. Sistema de comunicação e expressão verbal de um povo, nação, país, comunidade que permite aos usuários expressar pensamentos, desejos e emoções; Só a língua confere ser às coisas. 4 Idioma vernáculo; A Língua é o espírito do povo em atividade! 5 Maneira de falar ou escrever, linguagem; A linguagem dos mitos forja a língua dos deuses. 6 Força metapsíquica; A língua como palavra evocadora de essencialidades tem uma atividade que ultrapassa o mero condicionalismo físico. 7 Origem do canto, do ritmo, da palavra, do ruído e movimento corporal; A língua não foi feita para enfeite, brilhar como ouro falso; a língua, enquanto origem do ser das coisas, foi feita para dizer. Fig. Mostrar a língua em sinal de desagrado ou gracejo; Mostrou-lhe a língua com vontade de beijar os lábios de seus pêssegos.
                    

Lúcia Helena Alves de Sá é doutora em Teorias do Texto,
pesquisadora da obra de Agostinho da Silva
e Presidente da Casa Agostinho da Silva.

 

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